“Por vezes a palavra representa um modo mais acertado
de se calar, do que o silêncio” Simone de Beauvoir
Ao longo da história temos calado as vozes de muitas mulheres. Eis aqui o silenciamento de uma discípula e apóstola desde a tradição e a Bíblia.
Que diz dela a Tradição?
Uma história que fez sucesso na igreja de Ocidente foi identificar a Maria Madalena com Maria de Betânia e a pecadora pública, isto foi feito pelo papa Gregório I no ano 591 numa de suas homilias. Esta teoria ganhou popularidade no Ocidente e apesar de não ter fundamento bíblico perdura até hoje. Para os antigos a proveniência das pessoas era muito importante, por isso na Bíblia muitas vezes o segundo nome de uma pessoa é o lugar de onde procede. Assim sucede em Maria de Betânia e Maria de Magdala, o “de” indica a procedência de ambas, pelo tanto já sabemos que são duas Marias diferentes uma que é do povoado de Betânia e a outra de Magdala. Enquanto à identificação com a pecadora pública de Lucas não há motivos para fazer essa ligação. Na primeira comunidade –leia-se Marcos- Maria Madalena é colocada como uma das lideranças mais fortes da comunidade, mais ainda que a do próprio Pedro. Podemos pensar então que esta identificação com a pecadora pública se deu só por ignorância ou se pensamos mal –e talvez tenhamos que fazê-lo-, queria-se manchar o nome desta mulher com uma reputação duvidosa porque ela era uma pessoa muito importante para os primeiros cristãos e continuaria sendo assim no decorrer dos primeiros séculos, mas com a clericalização e masculinização da igreja havia que dar motivos ou até inventá-los para explicar o exílio da mulher dos cargos de liderança nas primeiras comunidades.
Por outro lado, dela também se diz que foi uma mulher que esteve muito perto de Jesus, até alguns acharam que poderia ser sua companheira ou sua esposa e isto não seria nada estranho já que Mestres celibatários não eram comuns na época, ainda que existissem. Porém, ainda que esta história haja atraído a novelistas e cinematógrafos não se pode deduzir da Bíblia.
Que diz dela a Bíblia?
- Ela era discípula de Jesus
Só o evangelista Lucas fala dela longe do contexto da morte e ressurreição e no capítulo 8 nos informa que ela era uma das discípulas que acompanhava Jesus junto com os doze e o serviam com seus bens. Só Lucas diz que dela saíram sete demônios. Esta informação aparece em Marcos 16, 9 que é um apêndice do evangelho, o evangelho terminava no verso 8 do mesmo capítulo. Alguém que encontrou muito abrupto o desenlace dessa Boa Nova resolveu agregar as aparições de Jesus Cristo e agregou também esta informação de Maria que não se tinha no corpo do evangelho e que não coincide também com a descrição que o evangelista dá sobre ela anteriormente. O que fica claro nesta perícope é que o discipulado era de homens e mulheres e que os doze não eram os únicos que seguiam a Jesus. Maria Madalena era uma discípula também.
“E aconteceu, depois disso, que andava de cidade em cidade e de aldeia em aldeia, pregando e anunciando o evangelho do Reino de Deus; e os doze iam com ele, 2 e também algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos e de enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual saíram sete demônios; 3 e Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes, e Suzana, e muitas outras que o serviam com suas fazendas.” (Lc 8, 1-3)
- Ela estava junto a Jesus no momento da crucifixão
Mateus e Marcos vão dizer que ela junto com outras mulheres acompanhou Jesus até a sua morte depois de segui-lo desde a Galileia e servi-lo durante a sua caminhada. E o evangelista João vai colocá-la junto à cruz. No momento crucial da vida de Jesus ele é abandonado pelos apóstolos, mas não é abandonado pelas mulheres. Marcos utiliza três verbos fortes nesta citação: seguir, servir e subir. Estes falam do modelo de discipulado no evangelho. Isto significa que não só se está falando de discipulado massivo senão do discipulado ideal, os verdadeiros discípulos são os que seguem os mesmos passos de Jesus, os que servem como ele e os que estão dispostos a entregar sua vida pelos irmãos. Já o evangelista João vai dizer que só as mulheres são as capazes de ficar em pé junto a Jesus no momento de dor extrema. Elas são as que conformam a comunidade modelo neste evangelho, uma comunidade que permanece de pé junto aos que sofrem, formando um só corpo incapaz de romper (como a túnica de Jesus que por ser de uma só peça e sem costura tem que ser sorteada entre os soldados, porque não pode ser dividida).
“55 E estavam ali, olhando de longe, muitas mulheres que tinham seguido Jesus desde a Galileia, para o servir, 56 entre as quais estavam Maria Madalena, e Maria, mãe de Tiago de José, e a mãe dos filhos de Zebedeu”. (Mt 27,55-56)
“40 E também ali estavam algumas mulheres, olhando de longe, entre as quais também Maria Madalena, e Maria, mãe de Tiago, o menor, e de José, e Salomé, 41 as quais também o seguiam e o serviam, quando estava na Galileia; e muitas outras que tinham subido com ele a Jerusalém.” (Mc 15, 40-41)
“25 E junto à cruz de Jesus estava sua mãe, e a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Clopas, e Maria Madalena.” (Jo 19,25)
- Ela acompanhou a sepultura de Jesus
Também Marcos e Mateus se põem de acordo ao dizer que Maria Madalena estava ali acompanhando a sepultura de Jesus e observando onde colocavam seu corpo. Era costume ungir o corpo dos mortos com perfumes e mirra, Maria segue os ritos ensinados e sai da sua dor para ir ao encontro do seu Mestre.
“47 E Maria Madalena e Maria, mãe de José, observavam onde o punham.” (Mc 15, 47)
“61 E estavam ali Maria Madalena e a outra Maria, assentadas defronte do sepulcro.” (Mt 27, 61)
- Ela foi a primeira testemunha da ressurreição
E todos, absolutamente todos vão falar dela como primeira testemunha da ressurreição de Jesus Cristo e anunciadora da mesma. É difícil que os quatro evangelistas se coloquem de acordo em algo, é difícil até nos sinóticos sem embargo aqui sucede com os quatro evangelistas. Uma coincidência tão grande só pode ser possível se o fato tem muita probabilidade de ser histórico ou se as tradições cristãs do primeiro século a respeitavam como uma figura altamente relevante. Maria Madalena é a escolhida por Jesus Cristo para ser visto e ouvido, para ser escutado e anunciado. Ela é a primeira apóstola, a primeira comunicadora da ressurreição, a primeira pessoa enviada a anunciar aos discípulos a nova vida de Jesus.
“E, no fim do sábado, quando já despontava o primeiro dia da semana, Maria Madalena e a outra Maria foram ver o sepulcro. 2 E eis que houvera um grande terremoto, porque um anjo do Senhor, descendo do céu, chegou, removendo a pedra, e sentou-se sobre ela. 3 E o seu aspecto era como um relâmpago, e a sua veste branca como a neve. 4 E os guardas, com medo dele, ficaram muito assombrados e como mortos.5 Mas o anjo, respondendo, disse às mulheres: Não tenhais medo; pois eu sei que buscai a Jesus, que foi crucificado. 6 Ele não está aqui, porque já ressuscitou, como tinha dito. Vinde e vede o lugar onde o Senhor jazia. 7 Ide, pois, imediatamente, e dizei aos seus discípulos que já ressuscitou dos mortos. E eis que ele vai adiante de vós para a Galileia; ali o vereis. Eis que eu vo-lo tenho dito. 8 E, saindo elas pressurosamente do sepulcro, com temor e grande alegria, correram a anunciá-lo aos seus discípulos. 9 E, indo elas, eis que Jesus lhes sai ao encontro, dizendo: Eu vos saúdo. E elas, chegando, abraçaram os seus pés e o adoraram. 10 Então, Jesus disse-lhes: Não temais; ide dizer a meus irmãos que vão a Galileia e lá me verão.” (Mt 28,1-10)
“E, passado o sábado, Maria Madalena, Salomé e Maria, mãe de Tiago, compraram aromas para irem ungi-lo. 2 E, no primeiro dia da semana, foram ao sepulcro, de manhã cedo, ao nascer do sol, 3 e diziam umas às outras: Quem nos revolverá a pedra da porta do sepulcro? 4 E, olhando, viram que já a pedra estava revolvida; e era ela muito grande.5 E, entrando no sepulcro, viram um jovem assentado à direita, vestido de uma roupa comprida e branca; e ficaram espantadas. 6 Porém ele disse-lhes: Não vos assusteis; buscais a Jesus, o Nazareno, que foi crucificado; já ressuscitou, não está aqui; eis aqui o lugar onde o puseram. 7 Mas ide, dizei a seus discípulos e a Pedro que ele vai adiante de vós para a Galileia; ali o vereis, como ele vos disse. 8 E, saindo elas apressadamente, fugiram do sepulcro, porque estavam possuídas de temor e assombro; e nada diziam a ninguém, porque temiam. 9 E Jesus, tendo ressuscitado na manhã do primeiro dia da semana, apareceu primeiramente a Maria Madalena, da qual tinha expulsado sete demônios. 10 E, partindo ela, anunciou-o àqueles que tinham estado com ele, os quais estavam tristes e chorando.” (Mc 16, 1-10)
“E, no primeiro dia da semana, muito de madrugada, foram elas ao sepulcro, levando as especiarias que tinham preparado. 2 E acharam a pedra do sepulcro removida. 3 E, entrando, não acharam o corpo do Senhor Jesus. 4 E aconteceu que, estando elas perplexas a esse respeito, eis que pararam junto delas dois varões com vestes resplandecentes.5 E, estando elas muito atemorizadas e abaixando o rosto para o chão, eles lhe disseram: Por que buscais o vivente entre os mortos? 6 Não está aqui, mas ressuscitou. Lembrai-vos como vos falou, estando ainda na Galileia, 7 dizendo: Convém que o Filho do Homem seja entregue nas mãos de homens pecadores, e seja crucificado, e, ao terceiro dia, ressuscite. 8 E lembraram-se das suas palavras. 9 E, voltando do sepulcro, anunciaram todas essas coisas aos onze e a todos os demais.10 E eram Maria Madalena, e Joana, e Maria, mãe de Tiago, e as outras que com elas estavam as que diziam estas coisas aos apóstolos.” (Lc 24,1-10)
“E, no primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao sepulcro de madrugada, sendo ainda escuro, e viu a pedra tirada do sepulcro.2 Correu, pois, e foi a Simão Pedro e ao outro discípulo a quem Jesus amava e disse-lhes: Levaram o Senhor do sepulcro, e não sabemos onde o puseram.” (…) ”11 E Maria estava chorando fora, junto ao sepulcro. Estando ela, pois, chorando, abaixou-se para o sepulcro 12 e viu dois anjos vestidos de branco, assentados onde jazera o corpo de Jesus, um à cabeceira e outro aos pés. 13 E disseram-lhe eles: Mulher, por que choras? Ela lhes disse: Porque levaram o meu Senhor, e não sei onde o puseram. 14 E, tendo dito isso, voltou-se para trás e viu Jesus em pé, mas não sabia que era Jesus. 15 Disse-lhe Jesus: Mulher, por que choras? Quem buscas? Ela, cuidando que era o hortelão, disse-lhe: Senhor, se tu o levaste, dize-me onde o puseste, e eu o levarei. 16 Disse-lhe Jesus: Maria! Ela, voltando-se, disse-lhe: Raboni (que quer dizer Mestre)! 17 Disse-lhe Jesus: Não me detenhas, porque ainda não subi para meu Pai, mas vai para meus irmãos e dize-lhes que eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus. 18 Maria Madalena foi e anunciou aos discípulos que vira o Senhor e que ele lhe dissera isso.” (Jo 20, 1-2; 11-18)
Conclusão
Por que temos escutado tão pouco sobre esta mulher? Por que é tão importante para alguns ressaltar o que só aparece uma vez nos textos em lugar de mostrar o que aparece com tanta firmeza em todos os evangelhos? Por que é apagada uma forte liderança, só porque é mulher? Por que uma mulher não pode ser escolhida por Cristo para anunciá-lo? Por que tantas piadas no dia da Páscoa dizendo que Jesus deixou que uma mulher o anunciasse para que a mensagem fosse mais rápido espalhada? Ajudam em algo esses comentários na pastoral? Até quando as mulheres serão fontes de piada também nos altares e prédicas em vez de ser valorizadas e animadas a agir como apóstolas como esta.
Calar a própria Bíblia para calar a liderança indiscutível de uma mulher, tirar sua dignidade inventando histórias de demônios para mostrá-la frágil, suja, inferior, calar seu discipulado e apostolado para calar o discipulado e apostolado das atuais mulheres, isso é o que conseguimos ocultando o que dizem os textos evangélicos. Estes silêncios só continuam nos falando de igrejas que ainda hoje lhes custa falar de igualdade entre as pessoas, de igrejas que ainda hoje continuam a submeter à mulher ao homem e que há tarefas exclusivas para um e outro sexo.
Maria Madalena foi uma discípula de Jesus, mas não qualquer uma, ela foi uma liderança da comunidade e foi a escolhida para ser a anunciadora da ressurreição de Jesus Cristo. Ela foi quem abriu caminhos para nós. Ela foi apóstola dos apóstolos. Celebremos sua festa, nossa festa, a de todas as mulheres.
María Gabriela Merayo Irrazábal
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